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segunda-feira, 17 de agosto de 2009

DUALIDADE DO ATOR



ATOR E PERSONAGEM: EXPERIMENTANDO UMA SEPARAÇÃO DE SI MESMO

Resumo: O desempenho do ator é uma criação imaginária, desdobrada da manifestação espiritual de um artista. Dentro do sistema de coordenadas apontado por uma dramaturgia (convencional, roteiro de ações, partitura de gestos, etc), abre-se a ele um vasto campo de elaboração ficcional para articular e compor as formas simbólicas dos gestos e das inflexões vocais, para ritmizar, selecionar, estilizar e distribuir os traços e acentos psicofísicos, cuja melodia integral constituirá a personagem.Palavras chaves : Ator. Personagem. Representação

O ator talvez seja, de todos os artistas, o que mais entrega sua pessoa ao ofício que exerce. Nada pode oferecer que não se realize e se inscreva nele mesmo, em corpo e alma, sem intermediação. Ao mesmo tempo sujeito e objeto. Nisso consiste o mistério: que ...
120... um ser humano possa pensar e tratar a si mesmo como matéria de sua arte. Agir sobre si, como um instrumento com o qual é preciso que se identifique, sem cessar e sem distinguir. Ao mesmo tempo agir, e ser manobrado; manipulador e marionete.
É no ator que os elementos da realidade e da ilusão se encontram. Existe uma tensão criativa entre a personagem fictícia e o homem real, que empresta a esta ficção nascida da imaginação de um autor, sua sólida realidade física, mais um acréscimo de imaginação e de invenção poética de gesto, ação, entonação e timing. O ator lembra às pessoas a poesia de se estar vivo.
Precisa dominar, assimilar, colocar todos os processos de metamorfose, que são, ao mesmo tempo, o que o separa de seu papel e o que o conduz a ele. É somente quando finda este estudo de si próprio em relação à personagem, articulados todos os meios, exercitando todo o seu ser a serviço das idéias que formou, e dos sentimentos para os quais prepara o seu corpo, seu espírito, é aí então, que se reencontrará transformado e tentará doar-se ao público.
Mas esse disfarce é ao mesmo tempo uma revelação. O ator precisa encobrir a sua pessoalidade, seu papel civil ou social de cidadão, para assumir a personagem, mercê do qual representa exemplarmente a condição humana, as vicissitudes trágicas ou cômicas da vida. O disfarce é uma revelação: ao ocultar-se o homem real pela máscara, indeterminando-o, transparece a verdade mais profunda da ficção.
O texto projeta um mundo imaginário de seres e situações, que sugere ao ator certa realidade que lhe é accessível, fruto da sua experiência externa e interna, e conforme sua própria cultura e riqueza espiritual. À base disso, verifica-se o ato criativo: a reconversão da experiência humana, de certo modo da própria realidade íntima, em imagem, em síntese, em gestalt, que possibilite a composição simbólica em termos de uma arte diversa daquela do autor. Já não se tratará de encontrar as palavras que constituem a imagem vislumbrada pelo dramaturgo. E sim, de compor com o material do próprio corpo, ...
121... a imagem de uma pessoa, que seja capaz de proferir aquelas palavras textuais, ou aquela partitura géstica especificada, nas situações e circunstâncias consideradas. A imagem final será do ator; transfiguração espontânea, imagem de sua própria experiência.
Todavia não só o ator busca a personagem. Também o público se funde com ela. Todos participam dessa atividade metamorfósica. Todos vivem intensamente a situação que se apresenta naquele instante. Identificam-se. Esquecem suas particularidades, suas profissões, suas atribuições e responsabilidades. Libertam-se da sua condição particular para participar do destino exemplar dos heróis e para, transformados no outro, viver a essência da sua própria condição.
Fernanda Montenegro define, de forma bastante curiosa, o desígnio do ator como alguém que tem a permissão da sociedade para enlouquecer e transgredir. É a tolerância da loucura: “Por um desses mistérios insondáveis nós temos o privilégio da tribo concordar que a gente enlouqueça em nome da própria tribo, e inclusive ela assiste e até participa intensamente transferindo e fazendo um pacto com esta loucura”. (1)
Evidentemente a transformação não é real. É simbólica. O processo é imaginário. Nenhum ator enlouquece de verdade ou sente realmente as dores do martírio num palco, por exemplo. Tanto o ator quanto o público, no mais intenso êxtase do auto-esquecimento, mantém aberto um pequeno olho vigilante, reservando-se uma margem de lucidez e distanciamento. Se Dioniso é o deus da fusão e da festa, Apolo é o deus da lucidez e da distância. O teatro grego, ao unir o canto e a dança, uniu o mundo telúrico-demoníaco de Dioniso ao mundo olímpico de Apolo. Nesse sentido, ele representa de um modo exemplar esse dúplice ser, composto de natureza e espírito, que é o ser humano, sendo o ator a própria metáfora desta imagem.
122A consciência dupla do ator, importante preocupação de todas as teorias de interpretação desde Denis Diderot (1713-1784), pode assim ser interpretada como uma entre muitas manifestações da dialética peculiar que alimenta o evento teatral por meio dessa misteriosa e dúbia figura.
O ator enche o seu papel. Eis o homem exposto no teatro, colocado em julgamento. Mas a atitude dos colegas em cena, uma reação da platéia, uma desordem nas coxias, uma alteração de luz, um pequeno erro de tempo do contra-regra, uma falha de memória, um gaguejo, uma queda passageira de sua força vital, tudo pode ameaçá-lo, e solitariamente, deve controlar a situação. Qualquer desconcentração e, em um instante, tudo pode se reverter contra ele, desapossando-o da substância da personagem que compôs.
Precisa de uma sensibilidade flexível e resistente, de operações interiores rápidas e delicadas. Quanto mais a emoção o aflui e o arrebata, mais lúcido deve tornar-se seu cérebro.
De modo geral, pode-se dizer que habitualmente na vida cotidiana, somos o nosso movimento, a nossa motivação, adaptamo-nos às posições de nosso corpo, e com isso somos a própria condição para a nossa existência. O ator, porém, tem que ser um e outro. Não é mais o seu corpo que ele visualiza e percebe, preparando a personagem, mas o seu corpo com outros, numa situação, numa trama e para um público. Michael Chekhov (1891-1955) diz que o ator “imaginará que no mesmo espaço que ocupa com seu próprio corpo real existe outro corpo – o corpo imaginário de sua personagem, que ele acabou de criar em sua mente”.(2)
Essa intuição do corpo com outros corpos, da coexistência ativa das presenças corpóreas, constitui a base da criação do ator. O corpo não é apenas mais um objeto, mas ...
123... uma abertura, uma comunicação, aquilo que faz a ficção existir durante toda a representação como modo de participação coletiva.
A personagem tem uma função estética que exige materializar-se em um sistema de signos. É constituída por elementos chamados a inscreverem-se em um corpo sem deixarem de ser fictícios, e em uma realidade sem deixarem de ser alheios ao mundo cotidiano, psicológico e social. O ator é o espaço onde se encarnam estes dados virtuais, mas não poderia dissecá-los até fazê-los seus, e daí confundir-se com o papel. Através de um sutil paradoxo, a encarnação da personagem no ator, acarreta uma desencarnação do ator na personagem: o corpo do ator, na medida em que presta realidade à personagem, se desfaz, perdendo as qualificações que lhe são próprias.
Criando uma personagem, o ator cria um campo de significações reais, posto a serviço de uma finalidade imaginária. Essas significações reais são imediatamente compartilhadas por um público e o ator tende a interpretar como uma segunda personalidade sua, o ser fictício a que deu vida.
Conhece-se pouco do conteúdo concreto deste estado de compartilhamento de dois seres: um real e outro imaginário/virtual.
Nesse sentido é interessante a formulação de Friedrich Schiller a partir de sua teoria do “ator sonâmbulo” como uma das possíveis definições para a relação ator/personagem:
“É preciso, primeiro, que se esqueça de si próprio, bem como da multidão que o escuta para viver no seu papel; depois, por outro lado é preciso que ele pense na presença do espectador, que tenha em conta o gosto deste último, e que modele a natureza. (...)
O ator está, até um certo ponto, no estado de um sonâmbulo, e descubro entre eles uma analogia marcante. Se este último, embora pareça ...
124... não ter consciência nenhuma do que faz, pode, no seu passeio noturno, quando todos os seus sentidos exteriores dormem de alguma maneira o sono da morte, assegurar cada um dos seus passos com a mais inconcebível precisão, contra um perigo que exigiria dele, completamente acordado, a maior presença de espírito; só o hábito pode tão maravilhosamente dar firmeza aos seus pés.”(3)
A estrutura da personagem estabelece uma tensão fundamental entre o real e o imaginário. O corpo do ator, pressuposto e reclamado pela personagem, se ausenta de si mesmo, ao emprestar-se a este outro ser virtual. Por outro lado, a personagem, convertida em matéria visível, se abstrai da realidade e funciona no espaço, instalando-se como uma imagem de carne e osso. Transposta fisicamente, longe de entrar na vida, introduz na representação que produz de si mesma, o exercício de uma atividade subterrânea que a contradiz, a exalta e a mina por todos os lados.
No teatro, atuar é, ao mesmo tempo, aproximação e distanciamento, possessão e abandono, imersão simulada no real e imersão ambígua em outro domínio. O ator aceita todos os problemas do papel, assume todas as suas responsabilidades, e adquirindo crença na realidade da sua existência, vive como se fosse outro, mas, ao mesmo tempo, não perde a capacidade de observar e criticar a sua obra artística – a personagem. Essa coexistência do ator e do papel foi denominada por Constantin Stanislavski (1863-1938) com o termo “dualidade do ator”.(4) A chave deste conjunto de fenômenos contraditórios deve ser problematizada no ato da atuação.
125No palco, deve agir em nome da personagem; aceitando prestar-se a esta nova identidade temporária. Deve entrar no espaço em que a personagem se encontra como também traduzir os objetivos de sua ação.
Se um ator não consegue interessar-se profundamente pelos problemas da personagem, há pouca probabilidade de sucesso no seu trabalho. E já que é ele próprio quem estabelece e dá forma aos objetivos, a atratividade dos mesmos depende dele mesmo.
A atuação pressupõe como fundamento, a aceitação da ambigüidade gerada pela metamorfose que furta o corpo de si mesmo, sem confundi-lo com a imagem na qual pretende transformar-se. Ou ainda, assumir uma operação que se sabe fraudulenta, quando busca fazer nascer verdade a partir do falso, e tornar crível tal simulação. A atuação se funda no recurso desta dúvida e fraude.
A personagem obriga o ator a experimentar uma separação, e a constatar uma distância a respeito de si mesmo. Desta forma, faz eco ao que escreveu Diderot, quando este afirmou que o ator não é a personagem: atua-o. E que ao fazê-lo tão bem tomamo-lo por esta. A ilusão só se produz para os espectadores, e não para o ator.
Interpretar, em um sentido primário, é traduzir de uma linguagem para outra; também, explicar o que existe de obscuro ou ambíguo em um escrito; dar a uma coisa, mediante determinadas regras ou instruções, um sentido real ou imaginário. No teatro, interpretar é representar um papel, é atuar fisicamente e psiquicamente. A personagem só se faz compreensível por meio desta operação: a interpretação.
Quando um ator representa, ele está dividido. E esta dupla existência, este tênue equilíbrio entre realidade e representação, condiciona seu trabalho. Experimenta uma dialética entre abandono e controle. Deve ser acima de tudo um observador da realidade, na medida em que tudo o que acontece é pertinente à natureza humana. É provável que, em certa medida, estranhe o real para conhecê-lo melhor. Olhar com isenção permite observar novos ângulos, descobrir outros campos de percepção.
126-Cabe ao ator representar a espécie humana em ação. É o homem que simboliza o próprio homem. E a efemeridade do teatro é sentida com mais definição na arte do ator, onde gesto e palavra nascem e morrem a cada instante. Nada fica além da memória: vozes, traços e vestígios invisíveis no ar.

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