A CHARLATANICE E O PREÇO DO OBSCURANTISMO.
Por Ací Campelo.
No inicio do governo, em seu segundo mandato, os acontecimentos na área cultural transformaram-se em cenas do mais genuíno teatro do absurdo. E aqui não vai nenhuma depreciação contra o teatro. Nada melhor do que “Esperando Godot”, a genial peça do dramaturgo Samuel Becket, para tentar explicar tanta indefinição e tanto marasmo. Na peça, personagens esperam por outro que nunca chega, na vida real dos artistas e produtores culturais piauienses, espera-se por gestões culturais dignas da classe que nunca chegam. E o que dizer da incomunicabilidade do teatro de Eugene Ionesco? É assim, também, entre o governo e a classe artística: o primeiro tentando esconder a existência da segunda, num total descompasso com a realidade. Mas o problema maior não está em conhecer ou desconhecer, existir ou não existir, o problema está em desvalorizar e espezinhar propositadamente.
De inicio, houve a mobilização da classe através do Fórum de Música Piauiense e do Conselho Estadual de Cultura por que se espalhou que a Fundação Cultural do Piauí ia deixar de existir ou se fundir com outro. Isso seria a contramão da história, inclusive, o reclame geral dos artistas era para que o governo criasse a Secretaria de Estado da Cultura. Impossível querer acabar com o único órgão oficial de cultura na esfera Estadual quando todos os esforços do governo federal são exatamente ao contrário, estruturar o Sistema Nacional de Cultura, via União, Estados e Municípios. Tudo bem, a Fundação continua. A questão não está em acabar com um órgão por que seu gestor foi inepto e inoperante. A questão é mais profunda, e podemos sentir isso pelo desprezo com que o Estado trata a cultura, esquecendo que esta área é uma das mais importantes geradoras de trabalho e renda em nosso país e que a economia da cultura pontua em todos os debates. Esse posicionamento, uma herança maldita da velha elite que dominou o Estado, e que via a cultura como adorno e como enfeite, parece continuar até hoje nos bastidores do poder, posição que conseguiu se entranhar no pensamento comum do mais simples mortal piauiense, aquele a quem falta comida e água potável. Se falta isso, para que arte e cultura.
A nossa percepção em determinado momento é relativa, assim como a realidade, quando se trata de questões éticas, estéticas, lembranças, imaginação, solidariedade, então, perdemos principalmente a capacidade de perceber a realidade e passamos a ser vitimas de nosso próprio destino. O problema, às vezes, é entender ou perceber verdadeiramente o que está por detrás de cada forma, de cada função, de cada medida. Por que tamanho descaso do Estado com a cultura? Onde está a razão de tudo isso? E aqui colocamos o Estado como um todo, o que engloba também os municípios. É preciso perceber as artimanhas, a parte oculta do descaso, a charlatanice para poder compreender por que uma área tão importante da sociedade é espezinhada como a área cultural, percebendo também por que a nossa sociedade, um tanto fragilizada por falta de segurança, alimentação, educação e cidadania plena, faz coro também numa imitação simplória do poder público e da elite dominante na desvalorização de sua cultura e de seus criadores.
Até mesmo no seio da classe artística, e talvez aí esteja o erro trágico maior, a nossa harmatia, perde-se a firmeza do conjunto e parte-se para a individualidade. Aí, o artista centra fogo naquilo que não é seu inimigo, e os companheiros, os amigos, os compadres passam a ser só aqueles que concordam – por que esses tem sempre a capacidade de concordar com tudo- e os que discordam, passam a ser inimigos, jogados no limbo, numa guerra de confronto terrível e numa desconstituição do antagonista que beira a sandice, o que só serve para dar continuidade ao total obscurantismo cultural em que o Piauí vive, sem contar que a transformação social é zero e os mortos e feridos são muitos, para o deleite do poder. Podemos perceber o jogo do poder quando não transformamos nossos próprios sentimentos? Ou não queremos perceber esse jogo de dominação a que somos submetidos? O que mais queremos em nosso meio artístico/cultural que não seja a transformação dos sentidos, dos sentimentos, da própria sociedade? Portanto, o confronto da classe contra ela mesma é ainda muito visível em nosso meio. E continua a fazer seus estragos. Veja a escolha da nova presidente da Fundac, onde muitos aplaudiram e outros tantos execraram.
Esse teatro do absurdo em que vimos a cultura do Estado ser tratada anos após anos dá bem a dimensão do descaso e do isolamento cultural em que somos mergulhados. E aqui a relação teatro do absurdo com nossa realidade cultural ultrapassa ao próprio absurdo da realidade, pois trata-se não de criar uma realidade mas de vivenciá-la da forma mais mesquinha possível, onde artistas e produtores enfrentam diariamente um campo de batalha sinistro pela sobrevivência, tomando calote do Estado, onde não se pagam cachês de apresentações artisticas, não se cumprem contratos, nem convênios de Leis de Incentivo, e rir-se ainda da miséria sobrando mortos para todos os lados da cultura, onde gerações de talentos desaparecem antes de aparecer ou então viram zumbis renegados em seu próprio território. E assim sendo seremos e continuaremos a ser um Estado relegado a permanecer no obscurantismo cultural.
É uma vergonha que a cultura e a arte valam inacreditavelmente menos a cada ano em nosso Estado. Gerações de artistas sem ter condições de emergir, por maior esforço que faça, por que participantes, de forma indireta, de um rateio, uma partilha do Estado feita entre grupos de novos ricos, novos companheiros e famílias tradicionais que continuam a se perpetuar no poder, fazendo o lado mais turvo da política. Para que cultura em um Estado que debocha da criação, do turismo, do lazer e do planejamento? Para que cultura em um Estado que condecora com medalhas de méritos e premia corruptos com cargos públicos? Claro que não é o Estado que produz cultura e arte, mas cabe ao Estado constitucionalmente propiciar os meios de difusão, divulgação e preservação de seus valores culturais.
É apenas um ponto de vista de quem acredita nas coisas do espírito, da alma e da criação humana. E de quem percebe e escolheu o seu campo de atuação. Mas não se esconde das responsabilidades de uma sociedade carente como a nossa, de trabalhadores explorados e excluídos. Portanto, na situação em que se encontra a área cultural – com o patrimônio arquitetônico indo ao chão, bibliotecas desatualizadas, casas de cultura pedindo socorro, arquivos públicos aos pedaços, leis de incentivo que existem mais no papel e uma total falta de visão e profissionalismo na gestão cultural, não é quem vai exercer o cargo de presidente de órgão oficial de cultura que importa, nem questionar a forma da escolha. Aliás soa estranho como um partido questionou uma escolha que é sua. Já que na partilha dos cargos a cultura foi lhe entregue, nada mais justo que esse partido arque com a responsabilidade de governar. Não terá é o direito de enlamear o governo que participa com uma má gestão. Repetimos, na atual conjuntura cultural do Piauí, o escolhido para gerir o órgão oficial de cultura, bem que poderia ser um carneirinho, um burrinho, uma vaquinha ou mesmo um macaquinho, com todo respeito aos animais e aos primatas, pouco iria adiantar. Pois não vimos nem deslumbramos, em nenhum momento na esfera do governo, a importância da cultura. Pelo contrário, até parece que foi rejeitada.
É só pensarmos na demora em que os gestores públicos de cultura foram alçados aos seus cargos, como se não fossem importantes ou como se não existisse ninguém preparado para tais funções. Onde fica a inteligência do Estado, pessoas capacitadas e preparadas para exercer qualquer cargo no setor cultural? Com que interesses e objetivos se escolhe gestores públicos de cultura no Piauí? Qual o maquiavelismo por trás disso? Custa acreditar que os objetivos sejam escusos, preferimos crer que seja para não funcionar mesmo e que a cultura continue de pires na mão. Até compreendemos os péssimos salários e a doação que precisa ter quem assume esses cargos, mas isso também foi criado pela própria desvalorização do setor.
Esse retrato cruel da cultura em nosso Estado podemos exemplificar com o ato de uma simples promotora pública que acabou com o desfile das escolas de samba de Teresina, com os argumentos mais fajutos possíveis, apagando da memória mais de sessenta anos de tradição. Quem do lado do Estado se posicionou contra? Quem do lado do município se posicionou contra? Pelo contrário! Oba, até que enfim acabamos com o carnaval, uma das nossas mais genuínas tradições culturais, viva! Realmente, vivemos em tempos absurdos, e como diria o genial Shakespeare, existe algo de podre no reino da Dinamarca, e nós completaríamos, e nas terras do Piauí.
O descaso, o obscurantismo e o deboche no tratamento com a área cultural em nosso Estado precisa ter uma luz no final do tunel. Afinal de contas somos parte de um universo maior. E o preço que pagamos por isso é imensurável, irrecuperável. Temos compromisso com o desenvolvimento do Estado na concepção mais plena do termo. Então, que o povo da cultura descubra-se, valorize-se e assuma cada vez mais, com responsabilidade e dignidade, a sua verdadeira função no todo do qual é parte - um Estado culturalmente isolado e sumido em um mundo globalizado. Sei que os verdadeiros artistas e produtores culturais já fazem demais, mas que não se cansem e nem se entreguem numa arena de pão e circo, e que façam valer cada vez mais o seu brilhantismo, o seu talento e a sua voz para colocar este Estado onde ele merece. Coisa que os políticos e as suas velhas e novas práticas nunca colocaram.
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